A digestão de macronutrientes orgânicos (carboidratos, proteínas e lipídios) é efetuada pelas enzimas do sistema gastrintestinal (SGI) ou sistema digestório (SD). Estas são hidrolases, que catalisam a adição de moléculas de água às ligações C-O e C–N dos nutrientes em sítios específicos como representado na sequência:
O processo de adição de água cinde a molécula dos nutrientes orgânicos em moléculas menores; o processo inverso, de remoção de água, é a condensação. As enzimas secretadas na luz do SGI denominam-se enzimas luminais e as sintetizadas nas células do SGI, denominadas enterócitos e incorporadas às suas membranas luminais como proteínas integrais, são as enzimas da borda em escova. A meia vida destas enzimas é menor do que a dos enterócitos. Assim, vários ciclos de quebra e síntese das enzimas ocorrem durante a vida destas células. As atividades das enzimas digestivas são facilitadas pelas secreções de água e íons para a luz do TGI (trato gastrointestinal). Resultam dos processos digestivos monômeros, dímeros e trímeros absorvidos através do epitélio do delgado. Os processos hidrolíticos ocorrem nas várias porções do TGI, na cavidade oral, no estômago e predominantemente no duodeno e nas porções proximais do íleo. O cólon não apresenta enzimas luminais e da borda em escova. Na Figura 22.1 estão indicados os locais de secreção das principais enzimas luminais e da borda em escova ao longo do TGI.
A superfície absortiva do delgado é amplificada cerca de 600 vezes, em razão dos graus crescentes de complexidade morfológica. A primeira amplificação se deve às dobras de Kerckring (dobras circulares ou valvulae conniventes). Estas são dobras da mucosa e da submucosa e projetam-se para a luz intestinal com comprimentos de 3 a 10 mm diminuindo em comprimento e número ao longo do delgado, sendo mais numerosas e maiores no duodeno e no jejuno proximal. Não se submetem a modificações de suas formas com a distensão do intestino. Elevam cerca de 3 vezes a área absortiva do delgado (Figura 22.2).
O segundo grau de complexidade estrutural no delgado são as vilosidades, que são dobras da mucosa (epitélio, lâmina própria e muscular da mucosa). Seus comprimentos têm cerca de 0,5 a 1,5 mm e elevam mais cerca de dez vezes a superfície absortiva do delgado. Têm formas foliáceas e digitiformes, embora variem com a distensão do delgado. Diminuem em número e tamanho no delgado no sentido caudal, desaparecendo no cólon. A arquitetura das vilosidades pode ser modificada por processos de adaptação em resposta à dieta e às demandas fisiológicas, como na lactação ou em resposta à remoção de parte do intestino. Há diminuição do número de vilosidades em várias condições patológicas, formando o que se denomina “mucosa careca”. As bases das vilosidades têm depressões, as chamadas criptas de Lieberkhün, cujas células são indiferenciadas e estão em constantes mitoses. As células nascentes, indiferenciadas, migram para os ápices das vilosidades, diferenciando-se, neste trajeto, em células absortivas ou mucosas. As células das criptas são predominantemente secretoras de água e íons e as do ápice das vilosidades são absortivas e digestivas.
A membrana luminal (ML) dos enterócitos absortivos apresenta microvilosidades com cerca de 1 µm comprimento por 0,1 µm de diâmetro, elevando mais cerca de 20 vezes a superfície absortiva. As microvilosidades formam a borda em escova do epitélio intestinal, havendo cerca de 3.000 por célula ou 200 milhões por mm2 de membrana luminal. Assim, o aumento total da área absortiva do delgado, considerando-se os três graus de complexidade morfológica, é igual a 3x 10 x 20, ou seja, 600 vezes superior à área de um cilindro liso de dimensão semelhante à do delgado. Isto equivale a uma área absortiva de 200 a 250 m2 , o que corresponde a aproximadamente 100 vezes a área superficial corpórea (Figura 22.3).
A mucosa duodenal compreende o epitélio, a membrana basal, a lâmina própria e a muscular da mucosa. O epitélio da mucosa intestinal é monoestratificado e heterocelular contendo as seguintes células: 1. absortivas, 2. secretoras, 3. caliciformes, secretoras de muco (globet cells), 4. digestivas contendo enzimas luminais, 5. endócrinas variadas e 6. células M. A lâmina própria é o tecido conjuntivo de sustentação do epitélio e preenche as vilosidades e as criptas, fazendo contato, de um lado, com a membrana basal do epitélio e, do outro, com a muscular da mucosa. Os tipos celulares mais comuns encontrados na lâmina própria são células mononucleadas como linfócitos, mastócitos, macrófagos e eosinófilos. São comuns, em caso de doenças inflamatórias do intestino, leucócitos polimorfonucleados.
As células do sistema imunológico do intestino secretam vários parácrinos que regulam processos absortivos e secretores dos enterócitos, como histamina, cininas, metabólitos do ácido araquidônico, prostaglandinas e leucotrienos. São encontrados ainda na lâmina própria, miofibroblastos, fibras colágenas e elásticas, além de fibras nervosas amielínicas do SNE (sistema nervoso entérico) e do SNA (sistema nervoso autônomo). A membrana basal, sobre a qual repousa o epitélio, é formada por proteoglicanas, fibronecitina, laminina, colágeno e fibroblastos, localizados na face contraluminal da membrana basal. Estas proteínas afetam funções epiteliais como diferenciação celular e transporte de íons e de água. Cerca de 500 poros com 0,5 a 5 µm de diâmetro são encontrados na membrana basal de cada vilosidade, o que torna esta membrana bastante permeável às moléculas absorvidas pelos enterócitos e que trafegam entre a lâmina própria e o epitélio. O epitélio das criptas apresenta os seguintes tipos de células: 1. principais, indiferenciadas, secretoras de água e íons; 2. absortivas; 3. mucosas caliciformes (goblet cells); 4. endócrinas variadas; 5. raras células caveoladas (tuft cells) e 6. células de Paneth, secretoras.
Durante o processo de migração das células, das criptas aos ápices das vilosidades, há aumento de suas atividades enzimáticas e de seus elementos transportadores. Esta migração ocorre com uma velocidade de 10 µm/h, levando 3 a 4 dias para as células nascentes alcançarem os ápices das vilosidades, onde substituem as células mais velhas que são descamadas para a luz intestinal. Desta maneira, o epitélio intestinal é completamente renovado a cada 6 a 7 dias. O processo de descamação das células dos ápices das vilosidades fornece cerca de 10 a 25 g de proteínas endógenas por dia. Estas são digeridas e absorvidas como as proteínas exógenas da dieta. A divisão celular das células das criptas e o seu processo de migração é regulado por fatores tróficos, hormônios gastrointestinais, fatores de crescimento epidérmico e também pela natureza do conteúdo luminal. Como o epitélio do TGI é constantemente renovado, é muito susceptível a agentes quimioterápicos e a radiações.
O cólon não tem enzimas luminais e da borda em escova e absorve apenas água, íons e ácidos graxos voláteis. O cólon possui diâmetro superior ao do delgado, mas comprimento inferior, de 1,5 m. Estende-se do esfíncter ileocecal ao ânus, apresentando as seguintes diferenciações anátomo-fisiológicas: o ceco, os cólons ascendente, transverso, descendente e o sigmoide que termina no canal retal que se abre para o exterior pelos esfíncteres anais interno e externo.
O ceco é uma porção dilatada do cólon ascendente e a mais rica em bactérias, apresentando o apêndice vermiforme, uma extensão agregando nódulos linfáticos. O cólon ascendente localiza-se na região ilíaca direita, dirigindo-se para cima e curvando-se à esquerda, formando o cólon transverso, logo abaixo do fígado. O cólon transverso sofre uma inflexão para baixo na região ilíaca esquerda, formando o cólon descendente que é a porção mais estreita do cólon. Sua posição é retroperitoneal e origina, na região pélvica, o cólon sigmoide, cuja forma resulta da contração tônica do músculo puborretal inervado pelo nervo pudendo. Na altura da terceira vértebra sacral inicia-se o reto e, na sua porção mais distal, forma o canal retal que se abre no ânus. As características estruturais do cólon são: 1. presença das Taenia coli, que são espessamentos da musculatura longitudinal formando quatro feixes, abaixo dos quais localizam-se os plexos mioentéricos; 2. a ausência de vilosidades, mas existência das microvilosidades formando a borda em escova; 3. grande número de células caliciformes mucosas superficiais no seu epitélio e 4. grande número de linfócitos e nódulos linfáticos na submucosa. As características fisiológicas importantes do cólon, distintas das do delgado, são: 1 ausência de enzimas luminais e da borda em escova; 2. absorção apenas de água e íons, em quantidades muito inferiores às que ocorrem no delgado e 3. presença de bactérias residentes. O cólon é capaz de absorver produtos orgânicos como os derivados da fermentação bacteriana, e ácidos graxos de cadeias curtas (ácidos graxos voláteis) resultantes predominantemente de carboidratos não digeridos e não absorvidos no delgado.
Tanto os enterócitos como os colonócitos são células prismáticas, altas, com o núcleo ovoide basal, sistema de Golgi para e supranuclear, retículo endoplasmático bastante desenvolvido, microtúbulos e microfilamentos, lisossomas com estruturas relacionadas como corpos multivesiculares, e peroxisomas. São muitas as barreiras que devem ser transpostas para a absorção de substâncias da luz intestinal até os capilares.
1. A camada de água não agitada que recobre a borda em escova. Sua espessura é de 200 a 500 µm e é a principal barreira para a absorção dos produtos da hidrólise lipídica. 2. O glicocálix. 3. A estrutura lipoproteica da membrana luminal ou borda em escova das células absortivas. 4. O citosol, se a absorção for transcelular; se for intercelular, as tight-junctions apicais e os espaços intercelulares. 5. A membrana basolateral das células absortivas. 6. O endotélio capilar. Estas barreiras estão esquematizadas na Figura 22.4.
Referência
Sônia Malheiros Lopes Sanioto. DIGESTÃO E ABSORÇÃO DE NUTRIENTES ORGÂNICOS.
Como referenciar este post?
CINTRA, Patricia. Integração básico-clínica do sistema digestório: absorção de nutrientes orgânicos. Post 413. Nutrição Atenta. 2023.